sábado, 4 de setembro de 2010

uma noite na lapa

A partir do momento que o rival do Grêmio foi campeão do mundo passei a me interessar mais por samba e menos por futebol. Poderia ter ficado bravo, irritadiço, frustrado. Preferi ficar indiferente, ao menos por fora. Por dentro, fico bravo quando me lembro, me irrito com facilidade e o futebol passou a ser um esporte frustrante.
O samba tem uma diferença primordial em relação ao futebol. No samba ninguém ganha ou perde. Todos ganham. E ganhar sempre é muito bom. O samba me dá mais alegrias do que o futebol. Aliás, mais alegrias do que qualquer outro tipo de música. Não que isso seja uma vitória, mas me irrita e frustra menos.
Assim, decidi que teria que entender o samba. Entender apenas, porque não sei tocar nenhum instrumento, quem dera sambar. Aliás, o único instrumento de corda que eu toco é o sino de igreja. Pensando bem, não saber tocar um pandeiro é uma derrota, dessas que tenho vivenciado no futebol. A diferença é que aprender a tocar só depende de mim.
Assim, fiz as malas e fui pro Rio de Janeiro, mais especificamente, posei num albergue em Santa Tereza. Meu rumo ficava aos pés do morro de Santa, mais especificamente na Lapa. Lá, o aprendizado poderia ser mais fácil, rápido e barato. E foi.
Na Lapa, o ambiente conspira. Os prédios velhos, os cariocas, a música. Tenho uma história para contar aos meus netos. Algo que eu me orgulho, eles talvez não. Fechei quatro bares na Lapa.
O primeiro, fechou cedo. Começaram a retirar as cadeiras, depois as mesas. Restou eu e uns amigos do albergue. Pedimos mais uma cerveja, e o garçom nos mentiu, dizendo que tinha acabado. O segundo bar, fechou também, uma hora depois. Sorte nossa, que do lado tinha outro. Esse fechou as quatro da matina. Lembro da minha visão anuviada, um tanto embaçada. Era uma terça feira dessas, que sobram poucos malandros por lá. Lá pelas tantas me cutucaram: haviam fechado aquele boteco também. Teria de abrir os olhos e levantar. O último bar foi o melhor. Ali, conheci pessoas fantásticas, dessas que só conhecemos no Rio, mais especificamente na Lapa. O boteco ficava aos pés de Santa Tereza.
Lembro do Zoinho, um ex policial. Ninguém de nós ousou perguntar por que ex policial. Teria sido exonerado? Teria se aposentado? O Zoinho era gente boa, e arregalava os olhos no final de cada frase, na tentativa de ressaltar o que fora dito. Uma pena precisar cheirar a todo instante. Essa foi a única vez que vi a droga sendo negociada. Passando de mão em mão discretamente, como se traficantes e usuários fossem mágicos escondendo um truque.
Lembro do traveco mais feio do mundo. Era um homem feio. Bem, todos travestis são homens. Mas esse, nem a barba fazia. Magro, alto, rosto esguio, queixudo. Acendia um cigarro no outro. Era a mulherzinha de alguém que estava dentro do boteco, não sei de quem. Ali chegou e ficou, sentada numa cadeira de plástico, em silêncio, fumando. Só parecia incomodada com o Chico da Mangueira.
O Chico da Mangueira estava sentado na cadeira, do outro lado da mesa. As vezes levantava, para gesticular aos seres imaginários com quem ele falava. E ele falava sem parar, sem ponto final, com raras vírgulas. Não havia diálogo possível. Lembro que ele falava da “comunidade“ a todo momento. Queixava-se muito do abandono que havia na comunidade. As vezes, quando levantava, esbarrava na mesa, que esbarrava no traveco mais feio do mundo. O traveco não gostava nada da situação, fazia uma cara feia de reprovação. E o Chico continuava a contar histórias, falar de política, de segurança e de samba. E da comunidade. O Chico dizia coisas de fundamento, comentou o Zé Sérgio.
Zé Sérgio era o cara que parecia mais culto ali, tipo letrado. Disse que morava em Santa Tereza, que já havia morado em São Paulo, mas que não aguentou ficar longe do Rio, da Lapa. Abandonou o emprego e voltou para o Rio, talvez para ser um típico malandro. Comentou que há muitos anos o Chico havia levado ele na comunidade, na véspera do carnaval. Lamentou pelo Chico, que, ainda gesticulava sem parar e comentava do abandono que se encontrava a “comunidade”.
De todas as figuraças que cruzei no Rio, nenhuma me encantou mais do que o Tiozinho. Ninguém sabia o nome dele. Aparentava uns 75 anos. Bastava alguém comentar sobre um samba ou um sambista, e ele cantava. Alguém gritava “Candeia”, e ele contava que conheceu Candeia em tal ocasião e que puxava um partido alto acompanhado pelas palmas de todos Outro gritava “Cartola!”, e ele explicava que Cartola era um servente de obras analfabeto, e compunha letras que poucos letrados fazem tornar-se sucesso. Outro malandro puxava “chegou, o carnaval, e ela não desfilou, “ e o Tiozinho continuava o samba do Benito de Paula.
O trânsito tornou-se intenso, a partir das cinco da manhã. As sete horas, resolvemos ir embora, satisfeitos com a aula do Tiozinho. Antes de subir Santa Teresa, deixamos o Tiozinho no hotel para solteiros que ele morava. Não sem antes, juntarmos umas moedas que sobraram para ajudá-lo em seu almoço do dia seguinte. Lembro que olhei para o boteco, que não fechava nunca. Saia os malandros cambaleantes, e entravam os trabalhadores, para tomar um café da manhã, afinal, o show tem que continuar.
Mas, o Chico ainda estava lá, sozinho, falando sem parar.

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