terça-feira, 8 de dezembro de 2009

a guria do quinto andar

Criado em casa, Roger sempre certo fascínio por apartamentos. Quanto mais alto, melhor. Gostava da sensação de olhar de cima, de ver as pessoas pequeninas, como se fossem playmobis, tal qual os que brincou quando pequeno. Além disso, do alto, conseguia avistar outros apartamento e observar o que os outros faziam.
Lembro da época em que estudamos juntos, e do alto do prédio da faculdade enxergávamos um apartamento onde a moradora trocava de roupa com a janela aberta. Os homens olhavam para esquerda, com os olhos apontados para o corpo violão da moradora, que a distância era bonita. Na sala, na outra janela, os pais dela assistiam televisão. As colegas de aula olhavam para o professor ou professora, aparentemente prestando atenção na aula. Os mais ousados abanavam, mas a moça fingia que não sabia ser observada.
Roger sempre gostou de observar, desde cedo descobriu-se um voyer. Talvez por isso seja fã desses programas onde as pessoas ficam confinadas numa casa. Uma amiga lhe confessou uma vez que, interessada no vizinho de janela, do prédio ao lado, fez um cartaz, onde pintou seu nome e telefone e colocou no vidro da janela, para que o vizinho visse. Ele ligou e mantiveram contato por um bom tempo. Questão de atitude, e homens gostam de mulheres com atitude. Ele, até então, nunca tinha tido a oportunidade de aproximar-se de alguém que observara de longe.
Até que conheceu uma menina que morava no nono andar de um prédio. Da janela do nono andar, viu uma menina, do prédio ao lado. Ela morava no quinto andar, mas vivia na janela. Penteava-se na janela. Comia na janela. Escovava os dentes na janela. Olhava o movimento pela janela. Havia uma buzina qualquer na rua e ela espiava pela janela. Mas, como Roger andava acompanhando e entretido com a menina que morava no nono andar, nunca conseguiu uma troca de observações ou um abano qualquer. Até que um dia a menina do nono andar dormiu cedo, e o Roger ficou desperto, andando pelo apartamento. Resolveu comer uma pizza. Foi jantar na janela. Do outro lado da rua, no prédio em frente, no quinto andar, a menina também jantava. Jantaram os dois juntos, cada um numa janela, cada um no seu andar, cada um no seu prédio.
Entre uma mordida e outra, ele abanava. Ela então virava o rosto. Mas, só virava o rosto quando ele a abanava. Precisava de um binóculo para ver se ela o olhava. Ou de um laser point para chamar a atenção dela. Na dúvida, foi tentar dormir.
O tempo passou, e a menina do nono andar tornou-se uma amiga. Um dia, foi devolver um CD ou um DVD, não lembra. Ao sair do edifício, olha pra trás e vê, na janela, a menina do quarto andar, na janela. Ela gostava da janela. Resolveu ter atitude, resolveu arriscar. Voltou e parou diante do interfone. Seria o 401 ou o 402? Apertou os dois. Uma voz feminina atendeu:
- Quem é?
- Oi. É do 402? - pergunta Roger.
- Não. Aqui é o 401. - responde ela com uma voz rouca, de quem pega sereno na janela.
- Quem fala? - arrisca.
- É a Ana. Quem é?
Ana. Bonito nome. Simples, fácil. A voz era a da Ana Carolina. Não esqueceria mais. Disse que tinha apertado o número errado e foi embora, pra voltar noutra hora, com mais tempo.
Dias depois, passeando de carro, decide que era o grande dia. Passa de carro e espia pela janela. A luz acesa, mas Ana não estava na janela. Estaciona e espera. Troca a estação do rádio. Ouve uma música e aguarda. Ainda tinha 30 minutos disponíveis, antes de um outro encontro. Ana não aparece na janela. Duas músicas depois, desce do carro e vai até o interfone. Lembrava o nome da menina da janela, mas não lembrava o número do apartamento. Aperta os dois, um depois o outro. Atende um homem:
- Quem é? - pergunta ele, com uma voz afeminada, macia.
Roger não responde, apenas espera. Poderia ser o namorado dela, mas a voz dela é mais máscula do que a dele. Não combinariam namorando. Também não deveria ser irmão, porque irmãos com voz tão distinta é difícil. Se bem que ela passa o dia na janela...
- Quem é? - agora a pergunta é da menina da voz rouca.
- Ana? - pergunta Roger.
- Sim. Quem é?
- Bom... Meu nome é Roger. Eu moro no prédio amarelo, no nono andar. E... sei lá, te achei bonita de longe, queria ver de perto.
Atitude ele teve. Mas, quando se tem atitude o cara é atirado. Quando não tem atitude, o cara é tímido. E a Ana, da voz rouca, acabara de ficar muda.
- Ana? Você ta aí? - pergunta.
- Como tu sabes meu nome?
- Esses dias eu desci e perguntei no interfone. Disse que era engano...
- Vou descer.
Ela desceu. Era bonita. Magra. Se você fechasse os olhos não acreditaria que aquela voz aveludada saía daquele corpinho esbelto. Cursava faculdade, morava há pouco tempo na cidade. Trocaram algumas idéias e os 30 minutos passaram voando. Roger teve de ir, mas pediu para voltar outro dia. Ela disse que não teria problema.
- Te procuro então. - disse ele. Sem telefones, sem e-mails. O único contato seria através do interfone.
Dias depois ele voltou. Um fardo de cerveja, bem gelada. Aperta os dois números do interfone. Ela atende.
- Quem é?
- O Roger.
- Tu sumiu. Não te vejo no nono andar, só vejo uma menina lá. - entrega-se a observadora.
- Me mudei. - mente.
- Quando?
- Dias atrás. Trouxe umas cervejas. Quer? - pergunta para mudar de assunto.
- Peraí que vou descer.
Depois das três latas de cerveja que cada um bebeu, ela o convida pra subir:
- Vamos subir. Tenho mais cerveja lá em cima.
E bebem mais algumas cervejas, escorados no para-peito da janela, olhando o movimento. A vista era legal do quarto andar. As pessoas ficavam mais próximas e maiores, o barulho era maior. E ali, na janela, beijam-se pela primeira vez. E naquele quarto, com a janela aberta, transam pela primeira e única vez. Adormecem com a brisa que vinha da rua.
- Bom dia. - diz ela com a voz mais grossa ainda.
- Que horas são? - pergunta ele, ainda com os olhos fechados.
- 7 horas. Tens que ir. Meu namorado está chegando.
- Namorado? - pergunta ele, já com os olhos bem abertos.
- Pois é. Não te falei. Tenho namorado. Vou noivar final do ano. Vou buscar ele na rodoviária daqui há pouco.
Roger foi embora. Foi usado pela menina carente, que fazia tudo na janela, da voz grossa, que ficava observando a tudo e a todos. Ao menos com essa, Roger jantou, mesmo que a distância, antes de ir pra cama.

Um comentário:

  1. Muito boa essa história! A carência sempre provoca eventos interessantes, e como!!

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